Pais temem ensinar virtudes às crianças e torná-las presas fáceis em um país onde o dever e a verdade parecem vencidos pela mania de levar vantagem.

A dentista Márcia Costa abomina infrações às leis de trânsito. Em especial, a prática adotada por muitos pais de parar o carro em fila dupla, interrompendo o fluxo de veículos, para deixar os filhos na porta da escola. Ela prefere estacionar seu carro mais longe e fazer os adolescentes caminharem até lá. Não satisfeita, reprova publicamente os motoristas que alimentam a irregularidade. Os filhos protestam: "Que mico!", diz Beatriz, de 15 anos. "Mãe, assim é você quem acaba sendo a chata da história", afirma Lucca, de 12. A guerra à fila dupla envolveu até o marido de Márcia, Marcelo, que certo dia colocou a convicção da mulher à prova: "Você quer estar certa ou quer ser feliz?" É um velho dilema. Filósofos gregos já se faziam a pergunta há mais de vinte séculos: uns defendiam que fazer o que é correto, o que deve ser feito, é o caminho para a felicidade; outros argumentavam que tal conciliação é impossível.

 

Ética e felicidade na Grécia Antiga​​

Pródico de Ceos (século V a.C.), um sofista, acreditava que ética e felicidade eram excludentes. Ele citava o exemplo da escolha de Hércules. Segundo a mitologia, o herói se deparara com duas deusas, a felicidade e a virtude, que o convidavam a viver duas vias distintas. Hércules optava pela virtude em detrimento dos prazeres passageiros. Já Aristóteles (século IV a.C.) pensava que ética e felicidade eram complementares: a primeira como o meio, a outra, como fim

 

O dilema vive no Brasil hoje. E se acirrou há poucas semanas com a publicação do artigo do economista Gustavo Ioschpe, colunista de VEJA, intitulado "Devo educar meus filhos para serem éticos?" Ioschpe revelou a apreensão de criar filhos em uma nação às voltas com problemas éticos de estaturas variadas — da ausência de pontualidade para compromissos à ausência de honestidade para governar. A certa altura, ele apresentou assim seu dilema: "Será que o melhor que poderia fazer para preparar meus filhos para viver no Brasil seria não aprisioná-los na cela da consciência, do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a integridade?" Foi a senha para que milhares de leitores se manifestassem, compartilhando apreensão idêntica.

Mais de 30.000 pessoas recomendaram o texto, reproduzido em VEJA.com, utilizando recurso do Facebook; centenas deixaram comentários ao artigo e espalharam as ideias contidas nele pela internet. Muitos aproveitaram a ocasião para contar suas histórias, seus dilemas. É o caso de Márcia Costa e dos demais pais ouvidos nesta reportagem. "Temos que criar nossos filhos para serem do bem ou para se darem bem? A preocupação é o quão inocente nossos filhos vão ser se forem educados para serem do bem", diz a tradutora Samira Regina Favaro Gris. A médica Denise Zeoti acrescenta: "A ideia de passar valores para minha filha e torná-la uma presa fácil me assusta. Quero que ela seja uma pessoa ética, correta, mas não quero que ela seja passada para trás."

Do ponto de vista filosófico, ética é um conjunto de valores e princípios que define os limites de ação de cada ser humano. "Esse conjunto nos orienta em três questões fundamentais, intrinsicamente ligadas à nossa liberdade individual: Quero? Posso? Devo? Minha resposta depende dos princípios éticos que adoto", diz o filósofo Mario Sergio Cortella. É uma questão simples de compreender quando aplicada à prática. De maneira geral, queremos muitas coisas: em alguns casos, podemos até obtê-las (ou realizá-las), mas, em outros, não devemos alcançá-las. Pode ser o caso de parar o carro em fila dupla na porta da escola dos filhos; pode ser o caso de desviar dinheiro dos cofres públicos. Pessoas eticamente saudáveis, prossegue a filosofia, são aquelas que podem, mas não fazem o que é errado.

 

Cortella: felicidade com éticaQuando se trata de ética, portanto, há sempre um choque entre princípios e ações individuais e coletivos. Seria mais correto, aliás, falar em éticas — no plural. Cortella tem um inusitado exemplo para explicar como elas se chocam, e como, no convívio social, a ética se impõe aos interesses individuais. É a análise do caso de uma casca de banana atirada ao chão. "Quem a atirou ali propositalmente seguiu a ética tola, egoísta. Quem viu a casca, mas não a retirou, agiu segundo a ética da omissão. Finalmente, quem jogou a casca no lixo seguiu a ética da vida coletiva."

 

Criar filhos no Brasil demanda preocupação extra por causa dos tipos de ética que se chocam no ambiente público. Afinal, como convencer os filhos de que é preciso falar sempre a verdade quando um deputado federal preso por desvio de dinheiro público é absolvido por seu pares, que asseguram a ele o mandato de representante do povo? "Uma sociedade em que os poderosos não são presos, em que nem todos são iguais perante a lei, vive uma contradição ética. Em público você quer parecer igualitário, mas por baixo dos panos, para seus parentes, você usa a ética da desigualdade", diz o antropólogo Roberto Da Matta (leia entrevista abaixo).

 

A ética — a da igualdade — pode ser o caminho mais longo e árduo para os brasileiros, em geral, e para os pais, em particular, rumo à felicidade. Mas é, segundo filósofo Cortella, certamente o único. "Não é possível ser feliz quando não se tem paz de consciência. Quem age de acordo com a conveniência do momento, prega uma ideia e aplica outra, não terá essa paz. Esse sofre de esquizofrenia ética", diz. "Agir de acordo com o que consideramos correto é o que traz paz de espírito." No artigo que levantou a discussão, Gustavo Ioschpe, logo após apresentar seu dilema, concluiu que deixar de transmistir a seus filhos um legado ético era uma decisão insustentável. O norte é mesmo a ética.

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