Inviabilidade “técnica”? Inviabilidade “econômica”? Como é possível que isso exista depois de 16 anos em que esses canais fazem parte obrigatória dos pacotes de TV por assinatura?

Em sua defesa do PLC-116, que estende o monopólio das teles à

TV por assinatura, diz o professor Marcos Dantas:

“... a PL 116 mantém todas as conquistas da velha Lei do Cabo quanto a canais obrigatórios. Afirmar o contrário, é mentira. Basta ler o artigo 32 da lei” (grifo nosso).

Estranhamente, logo em seguida, Dantas reproduz o artigo 32º do PLC-116, mas apenas até o 6º parágrafo.

Se ele aproveitasse o seu próprio conselho e lesse o artigo 32º até o final, em especial o parágrafo que vem logo após àquele com que encerra a sua citação, não teria omitido que:

“§ 7º Em caso de inviabilidade técnica ou econômica, o interessado estará desobrigado do cumprimento do disposto no § 6º deste artigo e deverá comunicar o fato à Anatel, que deverá ou não aquiescer no prazo de 90 (noventa) dias do comunicado, sob pena de aceitação tácita mediante postura silente em função de decurso de prazo.

“§ 8º Em casos de inviabilidade técnica ou econômica comprovada, a Anatel determinará a não obrigatoriedade da distribuição de parte ou da totalidade dos canais de que trata este artigo nos meios de distribuição considerados inapropriados para o transporte desses canais em parte ou na totalidade das localidades servidas pela distribuidora.

“§ 20º A dispensa da obrigação de distribuição de canais nos casos previstos no § 8º deverá ser solicitada pela interessada à Anatel, que deverá se manifestar no prazo de 90 (noventa) dias do recebimento da solicitação, sob pena de aceitação tácita mediante postura silente em função de decurso de prazo” (grifos nossos).

Inviabilidade “técnica”? Inviabilidade “econômica”? Como é possível que isso exista depois de 16 anos em que esses canais fazem parte obrigatória dos pacotes de TV por assinatura?

O último parágrafo chega a ser redundante – mas está na redação final do PLC-116, distribuída pelo Senado – de tanto que se insistiu na exceção da obrigatoriedade (e, jamais, na obrigatoriedade), como fez também o Ministério das Comunicações ao apoiar o projeto (v. a resposta do MiniCom ao pedido de informações do senador Álvaro Dias).

A atual Lei do Cabo, em seu artigo 23º, parágrafo 4º, estabelece apenas uma exceção da obrigatoriedade, bastante temporária - e que não se refere aos canais públicos e comunitários:
“§ 4º As geradoras locais de TV poderão, eventualmente, restringir a distribuição dos seus sinais, prevista na alínea “a” do inciso I deste artigo, mediante notificação judicial, desde que ocorra justificado motivo e enquanto persistir a causa.”

A “alínea ‘a’ do inciso I” torna obrigatória a distribuição, nos pacotes da TV por assinatura, de “canais (…), sem inserção de qualquer informação da programação das emissoras geradoras locais de radiodifusão de sons e imagens, em VHF ou UHF, abertos e não codificados”.

Ou seja, a exceção refere-se à distribuição da TV aberta pela TV por assinatura. Não há exceção de obrigatoriedade para os canais definidos a seguir pelo mesmo artigo (destinados à Câmara de Vereadores, Assembleia Legislativa, Câmara dos Deputados, Senado Federal, universitário, educativo-cultural e comunitário).

Não abordamos, exceto muito de passagem, essa questão em nosso artigo anterior. Porém, outros abordaram – e Dantas está errado. É algo surpreendente a rapidez com que ele sai a chamar de mentirosos aqueles que, corretamente, apontaram esse retrocesso do PL-116 até em relação à agachada Lei do Cabo fabricada por Sérgio Motta e Fernando Henrique.

Portanto, a questão aqui é: o que faz um intelectual, como o professor Marcos Dantas, passar por cima do texto do PLC-116 – e sair por aí chamando os outros de mentirosos, recomendando a leitura do que ele, no mínimo, não leu? Naturalmente, o fato do PLC-116, em seu conjunto, ser um retrocesso e não, como ele defende, um avanço.

Dantas já argumentou de modo muito mais convincente – e, sobretudo, com muito maior rigor. Entretanto, parece esquecido do que escreveu sobre o monopólio das teles em seu livro “A lógica do capital-informação” (Contraponto, 2002), cuja força residia menos nas premissas teóricas que no quadro desolador (e verdadeiro) que ele esboça das telecomunicações após sua privatização por Fernando Henrique.

Logo, a ansiedade porque se apontou um retrocesso, é apenas sintoma de que existe algo muito errado com sua causa atual, o PLC-116. De fato, é impossível defender que se trata de um “avanço” (sic), quando o projeto possibilita a anulação do único avanço verdadeiro da lei atual, ao mesmo tempo que acaba com as limitações – que já eram, em si, concessões - ao monopólio estrangeiro, em especial o das teles, sobre a TV por assinatura. Compreende-se, então, que a única forma possível de defendê-lo é negar que ele seja o que é, omitindo o seu caráter real.

Mas essa é uma defesa muito precária – e muito pobre para um homem com a inteligência do professor Dantas. Ao fim e ao cabo, é mais uma acusação contra a própria causa do que uma defesa.

Certamente por isso, algo peculiar aconteceu, nos últimos dias, com o PLC-116 - que tem como beneficiários imediatos a Telmex/AT&T, que açambarcou ilegalmente a Net há sete anos, e a Telefónica, que fez o mesmo, há quatro anos, com a TVA.

A peculiaridade é que, mesmo depois de aprovado pelo Senado, seus defensores não conseguem comemorar a vitória. Ao invés disso, continuam tendo que defendê-lo, e desse jeito. O que apenas demonstra que o seu conteúdo verdadeiro - não o fantasioso ou o propagandístico - é indefensável.

A maior parte dessas “defesas” não merece maior (nem menor) atenção. Quando alguém, pretendendo, obviamente, desqualificar o que escrevemos sobre o assunto, posta em caixa alta na Internet que “Carlos Lopes é pseudônimo de Ives Gandra Martins, que já foi advogado da Globo”, só resta - deixando de lado que a Globo apoiou o PLC-116 - dizer que já fui confundido com um corredor português de maratona, com um astro do hard rock local, com um diretor do banco central de Angola, e até com um autor de livros místicos e/ou de auto-ajuda. Mas sempre por ter o mesmo nome que eles. Por ter um nome diferente, é a primeira vez que sou confundido com alguém.

O esmagamento ideológico, em tempos de monopólio privado - para alguns, avassalador - torna-se mais nítido, precisamente, quando esses monopólios entram em crise. Neste momento revelam-se os que, apesar de sua contribuição crítica anterior, não conseguem desvincular-se deles, porque não conseguem conceber um mundo sem eles. Nessa escassez de independência, torna-se claro, então, que sua crítica, embora importante em época menos desenvolvida, não ultrapassava os limites daquilo que criticavam, a saber, os limites do próprio monopólio.

Não é algo novo essa espécie de edipianismo sócio-econômico – foi até mesmo o tema do principal debate ideológico de inícios do século XX. Nos casos mais graves, ele distorce a visão de mundo das suas vítimas até a realidade tornar-se, para elas, irreconhecível.

Diz o professor Dantas que o PLC-116 foi um “importante avanço”, mas que “importante avanço não significa – deveria ser óbvio – definitivas conquistas”.

Como nada na vida é eterno, exceto a certeza de que um dia vamos morrer, não sabemos o que Dantas quer dizer com “definitivas” conquistas. Já que não conhecemos nenhuma – e estamos contentes em lutar diariamente para manter as já alcançadas – supomos que “definitivas conquistas” signifique alguma conquista. Se for isso, estamos de acordo com o professor. No entanto, deveria ser óbvio que um retrocesso não pode ser um avanço.

Mas não é tão óbvio assim. Por isso, Dantas, logo em seguida, socorre o seu próprio argumento com a invocação do espírito da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (1ª Confecom). Diz ele que o PLC-116 é “a introdução na agenda, agora como norma de direito, de algumas reivindicações dos movimentos sociais na Iª Confecom”.

Entretanto, a 1ª Confecom aprovou a garantia de “um mínimo de 50% (cinquenta por cento) do mercado nacional de radiodifusão e TV por assinatura para a produção de conteúdo nacional” (cf. Caderno da 1ª Confecom, pág. 107).

Se Dantas acha que meia hora por dia (e somente no restrito “espaço qualificado”) é a mesma coisa que 50% do mercado, aí o problema passa a ser aritmético. Mas, certamente, não é o seu caso.

A Confecom não aprovou a entrega ao capital estrangeiro – e, menos ainda, às teles – da TV por assinatura, que é o conteúdo essencial do PLC-116. Pelo contrário, aprovou “a criação de uma política de reestruturação dos sistemas e mercados de comunicação, que contemple restrições à propriedade cruzada; à formação de cadeias de valor verticalizadas e de monopólios e oligopólios no setor; e que se oriente em prol da diversidade e da pluralidade” (cf. op. cit., pág. 127).

Dantas opôs-se à reativação da Telebrás para realizar o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). No entanto, a Confecom aprovou algo mais radical ainda do que essa proposta, que nós apoiamos, do presidente Lula: a “criação do serviço de banda larga (…) em regime público” (cf. op. cit., pág. 203).

Portanto, não é recorrendo à autoridade da Confecom que Dantas conseguirá provar que o PLC-116 é um “importante avanço”. Sobretudo quando, em relação às “cotas de conteúdo brasileiro”, ele mesmo diz que “é verdade, as cotas são ridículas”.

Sem as cotas, o PLC-116 é mera entrega às teles estrangeiras da TV por assinatura, tal como estava no projeto original, do deputado Paulo Bornhausen. Se as cotas são ridículas... Esse pequeno problema não se resolve pela citação das outras cotas do PLC-116 (“a cada três canais de ‘espaço qualificado’, um deverá ser brasileiro”), pois o próprio Dantas se encarrega de minimizar o quanto pode esse “espaço qualificado” - minimizá-lo é o preço do arriscado equilibrismo com as teles.

Mas... alto lá! Os culpados por essas cotas ridículas não são os que cederam diante das “fortes pressões contrárias”, mas a “omissão do governo” e o “desinteresse dos segmentos comprometidos com as questões nacionais e democráticas”. Não lhe ocorre que setor algum comprometido com as questões nacionais e democráticas (nem o governo) poderia se entusiasmar com um projeto que entrega a TV por assinatura a um monopólio pior do que o atual – e, ainda por cima, externo.

Para os leitores, poderá parecer esquisita essa dificuldade de reconhecer que monopólio é o antônimo de democracia e que monopólio externo é o contrário não somente de democracia, mas de nação. Infelizmente, essa questão elementar torna-se difícil até mesmo para pessoas bem intencionadas, quando, ideologicamente, não conseguem ir além do terreiro monopolista.

Apesar de reconhecer que “as cotas são ridículas”, Dantas declara que “mesmo assim, são dois filmes por semana, um deles obrigatoriamente independente. A rigor, reconheçamos, a nossa indústria ainda não produz muito mais do que isso”.

Não temos o professor Dantas por ignorante – ao contrário. Por isso, não abordaremos esse súbito desconhecimento da produção cinematográfica no Brasil. O leitor poderá consultar as estatísticas no site da Ancine – e lá estão apenas os filmes que foram distribuídos, faltando aqueles que de modo algum o foram. Além do que, Dantas esqueceu a filmografia anterior, pelo menos desde que Humberto Mauro começou a filmar lá em Cataguases. Quanto à produção independente, toda a produção cinematográfica da Globo é realizada por “produtoras independentes”. Como observa um grupo que não tem a mesma posição que nós sobre o PLC-116, “estava previsto [em outras versões do projeto] também um limite para as programadoras ligadas às empresas de radiodifusão não serem entendidas como produtoras independentes no setor de TV por assinatura, mas a última versão dá espaço para que elas sejam enquadradas nessa categoria” (cf. Intervozes, “PLC 116: os avanços e retrocessos do projeto que regulamenta a TV por assinatura”).

Isso tem relação direta com a “desagregação da cadeia (ou da rede)”, algo justo, como forma de combater o monopólio, mas que, ao contrário do que diz Dantas, não é determinada pelo PLC-116, exceto na propaganda enganosa – mas a falsidade de que as teles poderiam monopolizar a TV por assinatura, mas estariam proibidas de “produzir conteúdo”, já foi por nós exposta (v. HP, 19-23/08/2011).

Fora isso, o professor Marcos Dantas pretende defender o PLC-116 dizendo que ele “deveria estar sendo saudado por todos e todas”, pois “pela primeira vez na história das Comunicações brasileiras, uma lei regulamenta o campo da produção e distribuição de conteúdos” e “é isto que interessa”. Segundo ele, “quem se diz de esquerda e não percebe isto, está cego ou ainda não entendeu as mudanças no mundo nestas últimas décadas”.

Dantas pode não ter reparado, mas apenas repetiu o formidável argumento (?) da mídia e dos tucanos para privatizar as telecomunicações – e, aliás, qualquer coisa. No entanto, isso não é suficiente para que o PLC 116 passe a atender aos “interesses maiores do País” (sic). Não basta se dizer “de esquerda” para que tudo seja permitido, inclusive coonestar um monopólio privado e estrangeiro sobre a TV por assinatura do país. Convenhamos, dizer que quem não percebe aquilo que o professor Dantas quer, “está cego” ou vive no passado, não é exatamente o melhor argumento em um mundo civilizado. Aliás, não é argumento algum em mundo algum. Só faltaram as menções a dinossauros e/ou à era jurássica... Era assim que Fernando Henrique se dizia “de esquerda” - com as consequências que conhecemos.

A ideia de que qualquer regulação, mesmo que seja em favor de um monopólio privado, é melhor do que nenhuma regulação, é, em si, mais do que ridícula, até porque, nesse caso, é falsa – o professor Dantas sabe que existe atualmente uma regulação que proíbe às empresas estrangeiras deter mais que 49% do capital votante de uma operadora de TV a cabo, assim como proíbe as teles de entrar no setor. Toda a questão está em que o PLC-116 é um retrocesso até em relação a essas concessões tucanas.

Não é por acaso, portanto, que é exatamente onde esse retrocesso é mais explícito que Dantas ignorou o conteúdo verdadeiro do PLC-116.

Também de nada adianta dizer que “a Sky do Sr. Rupert Murdoch já entendeu e está bufando”. O professor Dantas sabe perfeitamente por quê. Não é a Sky que o PLC-116 beneficia, mas as teles. A Sky, por decisão espúria da Anatel, não está sujeita às limitações que são derrubadas pelo PLC-116. Por isso, não tem que acenar aos trouxas com cotas de fancaria, nem razão alguma para ficar satisfeita com a aprovação do projeto.

Poderíamos, em troca, dizer que a defesa do PL-116 pelo professor Dantas - cotas ridículas e Ancine à parte - é muito parecida com a do sr. Ethevaldo Siqueira na “Veja”, saudando “a ampliação da competição, a abertura de espaço para novos provedores de serviços, a multiplicação das oportunidades para novos investidores, a expansão do mercado para os produtores e distribuidores nacionais e, para nós, usuários, novas opções de conteúdo audiovisual de qualidade por menores preços”.

Nem por isso a “Veja” se transformou em defensora do interesse nacional. Muito pelo contrário.

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